O poder sobre os poderosos

Por Folha

Está na Bíblia, no Velho Testamento, 1 Samuel 8:10-22.

As pessoas de Israel querem um rei para governá-las.

O profeta Samuel explica que o rei cobrará impostos absurdos para sustentar seu luxo, tomará seus filhos como soldados, suas filhas como servas, usará seu poder para tirar das pessoas o que elas têm de melhor.

As pessoas respondem que querem um rei mesmo assim para governá-las, para que exista alguém com poder para taxá-las e prover bens públicos –aqueles serviços que beneficiam a população toda.

Samuel passa o recado a Deus, que diz: “Dá ouvidos à voz do povo e constitui-lhes um rei”. Três capítulos depois, Saul é proclamado rei.

Hoje, os benefícios da existência de um Estado são inquestionáveis. Devemos discutir quais devem ser as atribuições do Estado, mas uma entidade com poder para fazer valer as leis que regulam a vida em sociedade nos permite viver com mais tranquilidade e ser muito mais produtivos.

Contudo, essa passagem ilustra um problema crucial: essa “entidade” com poder, no fundo, é um grupo de pessoas. Quem garante que o poder desse grupo de pessoas (ou do rei) não será usado em benefício próprio, contra os desejos da população?

O grupo de pessoas no poder deve seguir certas leis, obedecer a certos limites. O problema é o seguinte: quem vai fazer valer essas leis? Por definição, não há ninguém com mais poder que o mais poderoso para disciplinar as ações desse último.

Estados modernos resolveram esse problema conferindo poder a um grupo maior de pessoas (governantes, legisladores, juízes etc.) de tal modo que um grupo tenha poderes sobre o outro e estabelecendo um conjunto de regras para pautar as relações entre esses grupos e a população.

A solução é ótima, mas é imperfeita.

Estados modernos têm atribuições que seriam impensáveis em tempos antigos. Hoje, o Estado decide o tipo de cadeira que eu posso usar para transportar o meu filho no meu carro em nome da segurança do meu filho. O interessante é que a maior parte das pessoas parece achar normal transferir das pessoas ao Estado o poder de decidir alguns aspectos dos cuidados com nossos próprios filhos.

O que quer que se pense do poder do Estado nessas questões, o fato é que temos uma confiança no Estado muito maior do que tínhamos antigamente. Isso significa que, de alguma maneira, conseguimos impor limites aos poderosos. Muito bom.

Contudo, esses limites são imperfeitos porque dependem das decisões de outras pessoas. Cada uma delas tem suas próprias motivações, boas ou ruins. As leis pautam essas decisões, mas também são imperfeitas (por vezes são muito ruins), pois foram escritas e votadas por pessoas. O fato de as leis serem passíveis de diferentes interpretações gera outra camada de confusão.

Em 1 Samuel 15:10-11, vem a palavra de Deus a Samuel, dizendo: “Arrependo-me de haver posto a Saul como rei”. Na época, os meios para tratar desse problema eram muito limitados.

Hoje, temos mecanismos para depor os reis como parte dos limites impostos aos poderosos. Pela natureza do problema, esses mecanismos serão sempre imperfeitos, mas é ótimo que eles existam.