Avacalhado à brasileira

Por Bernardo Guimarães

“Toda democracia que funciona é igual; cada democracia avacalhada é avacalhada em sua própria maneira” — Leo Tolstoy (brincadeira, tá?)

Começo com um resultado empírico. Trabalho de Sandro C. Andrade e Emanuel Kohlscheen mostra que em 2002, às vésperas da eleição de Lula, as expectativas sobre o Brasil dos investidores estrangeiros e dos brasileiros eram significativamente diferentes.

Em geral, investidores estrangeiros acreditavam que o Real ficaria bastante desvalorizado frente ao Dólar, enquanto os brasileiros acreditavam que a cotação do Dólar estava exageradamente alta, refletindo um cenário pessimista demais.

O resto é história. Lula ganhou a eleição e logo aprendemos que as expectativas dos investidores brasileiros estavam mais próximas da realidade. Ainda assim, ninguém esperava o que seria a política econômica do novo governo.

Esse resultado ressalta uma idiossincrasia da democracia brasileira relevante para a discussão sobre a transição atual para um novo governo.

Mentiras, corrupção, populismo, isso existe pelo mundo aos montes. Não faltam candidatos prometendo aumentar os gastos do governo e reduzir os impostos sem aumentar a dívida pública (seja por causa de um crescimento milagroso do PIB, de ganhos de produtividade não especificados ou por violações da aritmética).

Entretanto, em democracias que funcionam, as eleições vão pautando, em linhas gerais, as mudanças na condução da política econômica. Essas mudanças não costumam corresponder exatamente aos discursos, mas suas entrelinhas e as histórias dos partidos fornecem algum guia para as expectativas.

No Brasil…

A transição PSDB-PT se deu no final de 2002. Lula ganhou a eleição com um forte discurso de oposição ao governo do PSDB. Esperávamos alguma mudança.

Contudo, entre 2003 e 2005, a política econômica implementada pelo Ministério da Fazenda e pelo Banco Central seguiu a linha do governo anterior. Nem o Bolsa Família foi obra dos economistas do PT – o que não tira de Lula o mérito político pela criação desse importante programa em substituição ao que existia anteriormente.

As mudanças de rumo começaram só a partir do final de 2005 – os economistas que ocuparam os principais cargos no Ministério da Fazenda e no BC entre 2000 e 2005 concordariam com isso.

Lula foi reeleito em 2006 e Dilma eleita em 2010 com discursos de continuidade. Entretanto, a política econômica de Dilma 1 foi completamente diferente da política econômica de Lula 1. A equipe econômica de 2003-2005 se opõe fortemente ao que foi feito com a economia entre 2011 e 2014 e aplaude os feitos do governo de FHC.

O ponto aqui é que em 2002, as pessoas votaram por mudança, que não veio. A mudança veio depois, quando as pessoas votavam na situação e poderíamos esperar continuidade.

Em 2014, venceu o discurso da continuidade. O governo, porém, buscou alterar o rumo da política econômica – em que medida, nunca saberemos, pois o governo pouco conseguiu fazer.

Com o impeachment, Michel Temer assume a presidência com um discurso de mudança. Amigos estrangeiros (economistas), acostumados com democracias que funcionam, entendem que o procedimento de impeachment seguiu a letra da lei, concordam que a mudança de rumo na economia é benéfica, mas se preocupam com o mandato dado a Dilma e Temer pelas urnas.

Por exemplo, Michel Temer tem mandato para colocar Henrique Meirelles no ministério, com todas as implicações que isso tem para a política econômica?

Na nossa democracia, a resposta tem que ser sim… assim como Lula podia colocar Meirelles, então deputado do PSDB, na presidência do BC em 2003; assim como Dilma tinha legitimidade para jogar no lixo a estabilidade macroeconômica arduamente construída pelos governos anteriores (inclusive do PT); assim como Dilma, se quisesse, poderia ter colocado Henrique Meirelles na Fazenda em 2014 (possibilidade amplamente noticiada); e se por acaso tivesse sido realizada uma nova eleição após o impeachment e Lula houvesse vencido, Meirelles seria apontado como um dos mais prováveis ministros de Lula e ninguém questionaria a legitimidade.

Não parece que há muita divergência de ideias.

Mas na nossa democracia, isso caminha lado a lado com um ódio mortal entre os petistas e os anti-petistas.

A política parece refletir essa falta de seriedade da discussão econômica. O PT acusa o PMDB de golpista, que afirma querer distância do PT, mas os partidos podem ser aliados em várias eleições municipais já ao final deste ano — e ninguém vai de fato se surpreender.

Cabe aqui uma ressalva importante. Estou falando apenas de questões econômicas, que são importantes porque afetam o governo todo, e eu tenho condições de avaliar. Em outros aspectos, há divergências claras e facilmente identificáveis entre os partidos.

Patrícia Campos Mello explica as mudanças recentes nas relações exteriores do Brasil. A postura do Brasil nesse front de fato segue bem o que se esperaria de cada político ou partido.

Em outro exemplo, Bernardo Mello Franco destaca uma guinada conservadora no governo Temer que não foi sancionada pelas urnas. Sou leigo no assunto, mas tendo a aceitar a objeção de Vinicius Mota: a maioria da população é de fato conservadora mesmo.

Seja lá como for, na nossa forma peculiar de democracia avacalhada, a regra é a seguinte: o presidente da vez tem mandato para fazer o que der na telha e a gente vai descobrindo o que ele vai fazer na hora que a coisa vai acontecendo.

Seria ótimo se as eleições nos apresentassem um menu de propostas factíveis e escolhêssemos uma que seria, de fato, implementada.

Os discursos dos candidatos, porém, me lembram os hinos nacionais antes dos jogos da Copa do Mundo. Todo mundo canta alto, mas eles não têm nada a ver com o jogo.

Referência:

– O artigo é “Pessimistic foreign investors and turmoil in emerging markets: The case of Brazil in 2002”, de Sandro C. Andrade e Emanuel Kohlscheen.