A inflação como transferência

Por Bernardo Guimarães

Suponha que todos os preços e salários aumentem em 10%. O que acontece na economia?

Não parece que ficamos mais pobres ou mais ricos. Nossa renda e o preço dos bens que compramos aumentaram na mesma proporção.

Contudo, o dinheiro que temos no bolso e na conta corrente agora compra menos do que comprava antes desse aumento generalizado nos preços.

Por causa desse efeito, a inflação nos deixa um pouco mais pobres.

Mas o aumento nos preços dos bens por si só não afeta a produção da economia, não destrói máquinas e equipamentos nem a nossa força de trabalho.

Então não ficamos todos mais pobres.

O que há, no fundo, é uma transferência de recursos.

Com o aumento dos preços, a nota de R$ 10 compra menos do que comprava antes. Como essa nota é uma dívida do Banco Central, há uma transferência do portador da nota ao governo. A inflação funciona como um imposto (explico isso com mais detalhes aqui).

Da mesma maneira, o dinheiro na conta corrente é um empréstimo das pessoas e empresas aos bancos sem juros nem correção monetária. Com o aumento nos preços, o dinheiro na conta que o banco deve a cada correntista passa a valer menos.

Assim, a inflação transfere recursos de quem tem dinheiro no bolso ao banco central e de quem tem dinheiro na conta corrente ao banco.

Entendido esse ponto, vamos a três questões:

1. Comecei esse post supondo um aumento de 10% em todos os preços e salários. Com a inflação, os salários sobem também?

Sim, em geral, o aumento nos salários acompanha a inflação (há outros fatores que afetam os salários, por exemplo, em épocas de recessão, os salários caem em termos reais – ou seja, sobem menos que a inflação).

Contudo, na maior parte dos casos, o aumento nos salários só vem depois de um tempo: a inflação acumulada no período de um ano até agora será considerada nas discussões de reajustes salarias para categorias que tem reajuste esse mês.

O ponto aqui é que a inflação do último ano afeta o aumento dos salários agora, que afetará os custos das empresas e, portanto, os preços que elas cobrarão por seus bens e serviços.

Assim, quanto maior a inflação passada, maior tende a ser a inflação hoje. É isso que os economistas chamam de inércia inflacionária.

Há outros contratos na economia que estipulam reajustes de preços baseados na inflação passada. É isso que as pessoas têm em mente quando falam sobre a indexação na economia brasileira.

Por conta dessa inércia, é mais fácil segurar a inflação na meta que trazer a inflação de 10% ao ano de volta à meta.

2. “Inflação de 10% significa que ficamos 10% mais pobres”. Parece então que essa ideia está errada?

Sim, está. Parte dessa perda será compensada por aumentos de salários no futuro. Portanto a perda direta de poder de compra causada pela inflação é bem menor que esses 10%.

Mas se é assim, por que inflação é um problema?

Há vários motivos. Por exemplo, a inflação é um imposto que incide sobre quem tem dinheiro no banco, na conta corrente. Além disso, a inflação afeta negativamente os rendimentos reais da caderneta de poupança. Portanto, a inflação é um imposto pago pelos mais pobres.

Aqui, eu quero destacar um motivo pouco mencionado. A inflação faz com que aloquemos recursos para atividades que não geram mais produção e renda para o país.

Com a inflação alta, vale a pena para as empresas ter departamentos financeiros cheios de gente para minimizar a quantidade de dinheiro que fica parado no caixa ou na conta corrente.

Da mesma maneira, antes do Plano Real, muita gente trabalhava no setor bancário brasileiro apesar deste gerar pouca intermediação financeira: para muitos bancos, valia a pena operar por conta da transferência, propiciada pela inflação, dos correntistas aos bancos.

O resultado é muita gente trabalhando apenas para conseguir ou evitar transferências de recursos, sem gerar riqueza. Algo parecido com cobrir as janelas com tijolos para evitar pagar imposto (ou seja, para evitar transferir recursos ao governo).

3. Se é assim, o Plano Real afetou o setor bancário brasileiro?

Sim. Antes do Plano Real, com a inflação alta, o banco efetivamente levava uma parte significativa do dinheiro que ficava parado em conta corrente.

Com o Plano Real, essa fonte importante de renda dos bancos minguou. Muitos bancos deixaram de ser lucrativos e viáveis.

Isso foi bom. Bancos que vivem da inflação não geram riqueza para o país. É bom que as pessoas que trabalham apenas para ganhar com a inflação ou para evitar as perdas com a inflação passem a fazer outras coisas.

Houve 24 casos de insolvência no setor bancário brasileiro entre julho/1994 e dezembro/1995.

Alguns bancos simplesmente fecharam. Mas bancos que tinham várias agências foram, de maneira geral, adquiridos por outros.

Assim, teve início um processo de concentração no setor bancário brasileiro. Hoje, temos muito menos bancos do que tínhamos até 1994. Esse é um dos fatores que afeta a concorrência no setor financeiro (que eu discuti aqui).

___

Agradecimentos:

– Sugestões para posts são sempre bem vindas, ainda que eu consiga satisfazer menos da metade das sugestões. Esse post toca em questões levantadas pelos leitores Clovis Menezes Filho, Alexandre, João Carlos Soarez e Gilvan Velames.

Referência:

– Para os casos de insolvência no setor bancário brasileiro: “Reflexos do Plano Real sobre o sistema bancário brasileiro” de Rubens Penha Cysne e Sérgio Gustavo Silveira da Costa, Revista Brasileira de Economia 51:325-46, 1997).

Detalhe:

– Em alguns períodos, antes do plano real, os bancos ofereciam alguma remuneração pelo dinheiro depositado na conta (as “contas remuneradas”). Em geral, essa remuneração nem cobria a inflação, mas já era suficiente para que as pessoas deixassem mais dinheiro na conta corrente (e para quem não tinha muito dinheiro, não valia a pena ficar correndo atrás de uma remuneração um pouquinho maior em outro banco).