1982
“Vote três, o resto é burguês” era um slogan do PT em sua primeira eleição (o número do PT era 3). Aquele era o “Partido dos Trabalhadores”, o que defenderia os oprimidos na batalha política contra os opressores.
O PT abrigava tendências trotskistas e marxistas-leninistas (Libelu, PCBR, Convergência Socialista e várias outras), mas a maior parte do partido era “reformista” no jargão da época (ou seja, não era “revolucionária”). Mesmo assim, para os padrões de hoje, era um partido de extrema esquerda.
Eu não canso de escrever que os efeitos das políticas públicas vão muito além da distribuição de recursos. Para fazer política econômica hoje em dia, ler Trotski não ensina muito mais que ler a lista telefônica. O PT de 1982 não entendia nada de Economia.
E ainda assim, o PT na época fazia sentido.
O Brasil assistia o fim gradual de um regime ditatorial. O Partido do governo, o PDS abrigava os donos do poder político, que estavam acima da lei.
Em um exemplo extremo mas emblemático, em 1963, o senador Arnon de Mello matou outro senador, em plenário, na presença de muitos outros senadores. Verdade, foi sem querer: ele tentava acertar outro senador. Punição? Nem a perda do mandato. Arnon de Mello ainda era senador em 1982, no PDS.
O PT era, dentre outras coisas, uma resposta a esse cenário político arcaico, onde a maioria da população não tinha voz. Uma resposta bastante equivocada em inúmeros aspectos, mas também um canal de participação política para diversos grupos que não se viam representados pelos outros partidos.
Fora de São Paulo, o PT de 1982 era um partido nanico. Dos 419 deputados federais eleitos em outros estados apenas 2 eram do PT.
Olívio Dutra, um dos principais líderes do PT, teria 1,5% dos votos na eleição para governador do Rio Grande do Sul (em parte, talvez, porque era difícil a competição com o PDT de Brizola, partido da então pouco conhecida Dilma Rousseff). Sandra Starling, a candidata a governadora em Minas Gerais, teria pouco mais de 2% dos votos.
Por outro lado, em São Paulo, o PT teria quase 10% dos votos e elegeria 6 dos 60 deputados federais do estado. Dois de seus principais líderes, Lula e Jacó Bittar, eram os candidatos a governador e senador, respectivamente, com Hélio Bicudo como vice-governador.
O PMDB era a oposição moderada ao regime e venceria a eleição em São Paulo com facilidade. O governador eleito Franco Montoro abriria espaço no senado para seu suplente, Fernando Henrique. Para o típico eleitor do PT, Franco Montoro e Fernando Henrique não eram os nomes ideais, mas o PDS era muito pior. O PDS era o inimigo.
Enquanto isso, no Nordeste, todos os governadores eleitos eram do PDS. No Maranhão, Sarney Filho, filho do todo poderoso José Sarney, se elegeria para o primeiro de muitos mandatos na câmara federal. Em Alagoas, o deputado federal mais votado seria Fernando Collor, filho do senador Arnon de Mello. Todos do PDS.
O PT era um partido radical. Dos 8 deputados eleitos pelo PT, 3 deles (Airton Soares, Bete Mendes e José Eudes) logo sairiam do partido por votarem em Tancredo Neves na eleição indireta para presidente contra Paulo Maluf. O PT queria boicotar a eleição indireta e não estava aberto a acordos.
1994
Fernando Collor havia sido eleito presidente e afastado do cargo pelo congresso em 1992. O PT ganhara popularidade com a campanha pelo impeachment de Collor. Lula era um forte candidato à presidência.
No Ministério da Fazenda, Fernando Henrique capitaneava o Plano Real. Era mais um dos vários planos que visavam combater a inflação desde 1986, mas diferentemente dos outros, esse não era um “plano heterodoxo”.
Os economistas do PT diziam que o plano não duraria 3 meses. Junto com o PT, Lula se opôs fortemente ao Plano Real. E perdeu a eleição.
O PT faria oposição sistemática ao governo de Fernando Henrique. Mudava o cenário político. O PSDB passava a ser o inimigo.
2003
Num dos episódios menos apreciados da nossa história política recente, as equipes do Ministério da Fazenda e do Banco Central de Lula em 2003 tinham muito pouco de petistas.
O Ministro da Fazenda, Antonio Palocci, era um político do PT e médico, mas ele não chamou nenhum dos conhecidos economistas do PT para o ministério. Bernard Appy era o único dos principais secretários ligado ao PT.
Marcos Lisboa, o principal formulador de políticas econômicas, era muito de direita para José Serra (nas palavras do próprio candidato do PSDB, eu conto essa história em livro recente). Otaviano Canuto e Joaquim Levy tampouco representavam as ideias do PT para a economia.
Para a presidência do Banco Central, iria Henrique Meirelles, deputado eleito pelo PSDB de Fernando Henrique. Boa parte dos diretores do BC do governo anterior só sairia no decorrer de 2003.
Dentre os diretores do BC empossados durante o mandato de Lula, destaco Alexandre Schwartsman, que já se referiu à Presidente Dilma como “Dona Anta” em sua coluna na Folha (e não porque mudou sua forma de pensar desde então) e Afonso Beviláqua, que seria criticado por muitos economistas liberais por defender juros altos demais.
Rui Falcão na casa civil do governo Aécio não seria mais contraditório.
Mesmo assim, não houve um processo de reorientação do partido. O PT seguiu como se nada estranho houvesse acontecido.
Dentro do governo, um dos críticos mais vocais ao BC era o vice-presidente José Alencar, milionário burguês de um partido “de direita”.
Em vários aspectos, a política econômica dos primeiros três anos do governo Lula foi muito liberal. Teve austeridade fiscal, reformas microeconômicas e até um programa de transferência de inspiração liberal (o Bolsa Família). Para a economia do país, essas políticas foram muito boas. A marca PT ganhou força.
Só que o PT não amadureceu como partido. Até 2002, o PT era o partido da oposição sistemática às políticas do tipo que o próprio partido buscaria implementar entre 2003 e 2005.
O óbvio conflito entre atos e discurso não foi resolvido, mal foi encarado. E assim, o PT foi deixando de ser um partido com identidade.
Desde 2006, o governo do PT foi caminhando para longe do receituário liberal, mas o discurso do partido continua habitando um mundo paralelo. Nesse mundo fictício, as políticas de Lula em 2003-2005 foram completamente diferentes das de FHC e parecidas com as do primeiro mandato de Dilma Rousseff. E os discursos de campanha não precisam ter qualquer relação com os planos de governo.
O aniversário
O PT que nasceu com o final da anistia representava, para muitas pessoas, a esperança equilibrista no Brasil que sonhava com a volta do irmão do Henfil.
O PT que comemora o aniversário esse mês é um partido corrupto, que não consegue afinar atos com palavras. Um partido tão perdido, que faz oposição ao seu próprio governo.
A torcida do PT se apoia no ideário de um partido que é contra os poderosos (e a ditadura), mas figuras do antigo PDS como Fernando Collor e José Sarney são hoje aliados do PT. Não seria estranho se Delfim Netto fosse ministro de Dilma.
Muita gente que construiu o PT não vai comemorar o aniversário do partido esse mês. Sandra Starling, outrora a grande liderança do PT em Minas, disse em 2014 que “votar em Dilma seria exercer o direito de ser idiota”. Hélio Bicudo, ex-companheiro de chapa de Lula, elaborou uma das ações para o impeachment de Dilma.
Jacó Bittar é mencionado nos jornais hoje porque seu filho Fernando é um dos donos do sítio de Lula em Atibaia. Longe dos holofotes, o deputado do PT mais votado em 1982, Djalma Bom, continua ligado ao PT, mas reclama da crise de identidade do partido e se ressente com as mudanças.
O problema do PT não foi mudar. Era preciso abandonar a visão econômica que pautava o esquerdismo juvenil do PT de 1982.
No melhor dos mundos, o PT teria se tornado um partido da esquerda moderna, defendendo políticas plausíveis que realmente tentaria implementar. Seria um contraponto saudável e bem vindo aos liberais, como eu.
O PT, porém, não conseguiu se reinventar. E assim, seu discurso foi se afastando da realidade e de seus planos até perder o sentido. A desonestidade intelectual tomou conta.
O PT que sopra as velhinhas em 2016 não é mais um grupo de pessoas organizado em torno de um conjunto de ideias e planos de política. É apenas um grupo de pessoas em busca do objetivo de ganhar a próxima eleição.