Na semana passada, foi divulgado o relatório de 2016 do projeto Doing Business, um projeto que compara o ambiente de negócios em praticamente todos os países do planeta e recebe muita atenção em todo o mundo.
Poucos sabem, mas a história do projeto Doing Business começa no Peru.
Nos idos de 1983, pesquisadores de um instituto de pesquisa peruano simularam a montagem de uma pequena fábrica têxtil no subúrbio de Lima, capital do país, para descobrir quanto tempo e dinheiro isso custaria, cumprindo todos os procedimentos burocráticos legais, sem intermediários ou despachantes.
O complicado processo levou 289 dias (9 meses e meio).
O interessante é que apesar do longo e custoso processo, as autoridades não perceberam em momento algum que estavam lidando com uma simulação.
O estudo foi publicado no livro El otro sendero (“O outro caminho”) de Hernando de Soto, com o subtítulo “A resposta econômica ao terrorismo”. O título do livro fazia alusão ao Sendero Luminoso, a guerrilha de orientação comunista que buscava tomar o poder no Peru.
O Sendero Luminoso propunha mudanças radicais no Peru. O livro de Hernando de Soto, também, mas apontava um caminho completamente diferente, defendendo a remoção das barreiras que impediam os peruanos de produzir, trabalhar e trocar.
Hernando de Soto não poderia ter imaginado o impacto que seu livro teve, fora do Peru. O estudo chamou a atenção de pesquisadores de economia e de ciência política pelo mundo todo.
Anos depois, inspirados pelo livro de De Soto, os pesquisadores Djankov, La Porta, Lopez de Silanes e Shleifer fizeram um estudo sobre a regulamentação da entrada de novas empresas usando dados de 85 países. O trabalho contou com financiamento do Banco Mundial e daria origem ao projeto Doing Business. Um dos autores do estudo, Simeon Djankov, é o principal criador do projeto.
Assim como no trabalho peruano, o objetivo era descobrir o custo e o tempo necessário para cumprir os requerimentos legais para abrir uma empresa nesses países. Diferentemente do trabalho peruano, eles mediram o tempo e o custo de acordo com as leis (seria impraticável tentar abrir empresas em 85 países).
A pergunta de fundo do estudo era a seguinte: as regulamentações existem para diminuir ineficiências, ou seja, elas cumprem um papel econômico? Ou existem para gerar benefícios privados (como proteção das empresas que já existem, suborno, etc)?
O artigo mostrava que a regulação variava muito de país para país.
Por exemplo, abrir uma empresa tomava 2 dias no Canadá e na Austrália e pouco mais que isso em uma série de países desenvolvidos, mas levava 5 meses em Moçambique e em Madagascar. Isso levando em conta os dados oficiais, sem considerar o “não era esse o papel, precisava de outro carimbo”, o “não ficou pronto, volta semana que vem”…
Na República Dominicana, os 21 procedimentos custavam mais de 4 vezes a renda média anual do país. Na Georgia, os 13 procedimentos tomavam 69 dias, mas com um despachante, a coisa toda saía em 3 dias.
O estudo mostrava também que a quantidade de regulação estava positivamente correlacionada com corrupção, mas não tinha qualquer relação com a qualidade dos serviços. Difícil acreditar que os demorados e custosos procedimentos estavam cumprindo algum papel econômico e gerando benefícios.
O trabalho foi publicado em 2002 no Quarterly Journal of Economics, um dos periódicos de maior prestígio na área de Economia e teve um grande impacto.
Não é nada surpreendente que em países onde abrir e operar empresas seja custoso e difícil, haja menos competição, menos produtividade e menos renda. O que surpreendia é que os custos para operar empresas fossem tão altos em alguns países (tipicamente os mais pobres) e tão mais baixos em outros (os mais desenvolvidos). Além disso, esses custos não pareciam estar associados a benefícios.
Esses trabalhos foram peças importantes de uma mudança de ênfase no estudo e pesquisa sobre o desenvolvimento econômico, ocorrida nas últimas décadas.
Até os anos 1990, boa parte da pesquisa sobre desenvolvimento focava em fatores “macroeconômicos” (como, por exemplo, o regime cambial). Mas quão importante pode ser a taxa de câmbio se é preciso 9 meses para se abrir uma empresa, ou se a empresa não consegue cumprir os trâmites burocráticos para exportar?
Desde então, a pesquisa sobre desenvolvimento econômico tem focado mais em aspectos “microeconômicos” (por exemplo, qual o efeito de melhorias no acesso ao crédito sobre a produtividade das empresas? Quão rápido crescem as empresas mais produtivas? )
Uma questão fundamental da pesquisa sobre desenvolvimento econômico é: “o que o Estado precisa fazer para induzir o desenvolvimento nos países mais pobres?” Uma das respostas desses trabalhos era: “precisa parar de atrapalhar”.
Em muitos casos, a intervenção do Estado traz importantes benefícios para a economia. Contudo, em muitos outros casos, e especialmente em países mais pobres, as intervenções estatais impõem barreiras aos motores do desenvolvimento sem gerar benefícios para a sociedade.
Nas últimas décadas, alguns países têm conseguido reduzir as barreiras aos negócios. Contudo, como mostra a décima terceira edição do relatório Doing Business, divulgada na semana passada, muitos lugares do mundo ainda não encontraram esse caminho para o desenvolvimento.
Referências:
– O artigo que fez o estudo para vários países é “The regulation of entry”, de S Djankov, RL Porta, F Lopez de Silanes e A Shleifer, publicado no Quarterly Journal of Economics em 2002. Logo no início do artigo, os autores escrevem que o trabalho “deve muito” ao livro de Hernando De Soto.
– O livro “O outro caminho” de De Soto trata de muitos aspectos da burocracia peruana, não apenas do tempo que se leva para abrir uma empresa.
– A Folha falou sobre o Brasil no último relatório do Doing Business aqui. Eu falei sobre a relação entre o ranking do Doing Business e a renda de cada país aqui e sobre um quesito em que estamos particularmente mal (pagamento de impostos) aqui.
– A parte sobre o livro de Hernando de Soto foi adaptada de meu livro Economia sem Truques (co-autorado com Carlos Eduardo Gonçalves).