No momento em que se discute o ensino médio e a prova do ENEM de ciências humanas, aproveito para falar sobre uma outra questão acerca do ensino superior de Economia em algumas universidades.
Pergunte a um físico ou a uma engenheira se eles já leram o Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica. Se eles entenderem a pergunta, a resposta será negativa. É provável, porém, que eles nem saibam que esse é o nome da obra monumental de Isaac Newton sobre a física mecânica.
Esse desconhecimento jamais será motivo para duvidar da capacidade do físico ou da engenheira. Afinal, eles aprenderam física estudando outros livros, que explicavam de maneira mais clara as leis de Newton. O texto original interessa aos estudiosos de história da ciência, mas para quem quer aprender física, o que Newton estava pensando quando escreveu sua obra é absolutamente irrelevante.
Isso vale para todas as áreas do conhecimento humano. Grandes descobertas são seguidas por novos trabalhos e por maneiras mais simples de explicar o que estava na obra inicial. Com o passar do tempo, o conhecimento acumulado é traduzido de maneira mais clara e completa e, a partir de um certo ponto, não vale mais a pena consultar a obra original.
Por exemplo, ao traduzir as leis do eletro-magnetismo em equações, James Maxwell não tornou a contribuição de Michael Faraday menos valiosa, mas tornou menos importante ler os originais de Faraday. Quem pesquisa sobre a Teoria da Evolução tem como ferramentas as equações diferenciais que caracterizam o processo evolutivo, mas isso não desmerece o trabalho de Charles Darwin. E todos nós estudamos o que Newton descobriu, sem ler o que ele mesmo escreveu.
Em economia, não é diferente. Os pesquisadores mais renomados dos melhores departamentos de economia do mundo não aprenderam economia lendo as obras originais de Adam Smith ou Keynes. Uma minoria deve ter lido esses livros (ou parte deles), mas por curiosidade.
Entretanto, em muitos cursos no Brasil, o estudo da Economia parece uma exegese de escrituras antigas.
John Maynard Keynes foi um economista brilhante. Foi o editor de um dos principais periódicos da época, o Economic Journal, por mais de 30 anos. Em 1936, publicou a Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, um livro que teve enorme impacto na maneira como pensamos a Economia. O entendimento que temos hoje sobre flutuações econômicas deve muito a essa contribuição de Keynes.
Como seria de se esperar, ao livro original, seguiram-se muitos outros trabalhos, alguns apontando falhas na teoria, outros confirmando algumas de suas predições. Muito se aprendeu desde então e maneiras muito mais claras de expor as ideias centrais de Keynes foram surgindo.
Contudo, em muitas escolas de Economia no Brasil, despende-se um tempo enorme lendo a Teoria Geral de Keynes e várias outras obras clássicas, buscando entender o que os autores de fato disseram (ou quiseram dizer), como se essa fosse uma maneira razoável de aprender Economia.
Curiosamente, quem acredita que Economia deve ser ensinada assim se proclama “heterodoxo” (isso não quer dizer que todos os heterodoxos acreditem nisso).
Em um exemplo particularmente relevante para este blog, em seu livro de 1936, Keynes partia da hipótese que os salários nominais demoravam a se ajustar. Uma das implicações de sua teoria era a seguinte: quando a economia vai bem, os salários em termos reais (ou seja, considerando-se a inflação) são mais baixos.
Já em 1938, outros trabalhos apontavam que essa implicação não estava correta. Quando a economia vai bem, os salários reais (descontando-se a inflação) são, em geral, um pouco maiores.
Em 1939, Keynes respondeu às críticas dizendo que a hipótese de salários rígidos havia sido feita para simplificar a exposição, e que outras hipóteses poderiam mudar essa implicação de sua teoria sem mudar os resultados principais. A implicação de salários rígidos não era fundamental.
Com o tempo, foram se desenvolvendo outras formulações alternativas que geravam resultados semelhantes aos da teoria original de Keynes. A maior parte desses modelos tinha (e tem) rigidez de preços ou salários (ou ambos). Na profissão, esses modelos passaram a ser chamados de “keynesianos”, por refletirem os principais insights de Keynes (não necessariamente da maneira original).
Há poucas semanas, escrevi um post sobre o que de fato significa “ortodoxo” em Economia. No final, eu dizia que “parte fundamental do pensamento keynesiano é que os preços e salários demoram a se ajustar”. Pelo que me contam, choveram nas redes sociais críticas por conta dessa frase, pois afinal, eu não havia lido (ou entendido) a Teoria Geral.
Aos especializados na exegese da Teoria Geral e estudantes, explico:
1. Não é preciso ler a Teoria Geral para saber que Keynes tinha em mente rigidez de salários, não de preços. Vários livros texto explicam isso (e mais), incluindo o do David Romer, que eu uso há anos nos meus cursos de Macroeconomia.
2. A comunidade acadêmica atribui a Keynes as ideias fundamentais que nos levaram a incorporar rigidez de preços e salários nos modelos macroeconômicos. Assim, hoje, chamamos esses modelos de “keynesianos”, mesmo que a formulação seja diferente da original.
3. O que Keynes de fato estava pensando em 1936 e em 1939 é absolutamente irrelevante para o nosso entendimento de Economia. Ler a Teoria Geral é uma ótima maneira de aprender sobre a Teoria Geral, mas não é uma boa maneira de aprender Macroeconomia.
A pesquisa em Economia tem avançado muito nas últimas décadas. É uma pena que tantos economistas se formem nesse país achando que aprende-se Economia decifrando obras de sábios escritas há 80 anos. E é sintomático que empregadores que querem contratar quem entende Economia dêem muito menos valor a esse tipo de formação.
Referência:
– Mais sobre a discussão acerca de salários rígidos em Keynes, a implicação empírica que contradiz os dados e a resposta de Keynes em 1939 pode ser encontrado no livro de David Romer, “Advanced Macroeconomics”.