Eu passei a ser considerado “ortodoxo” quando voltei ao Brasil, em 2010. Nos 10 anos que englobam o doutorado em Yale e o meu trabalho como professor na London School of Economics, eu nunca encontrava essa classificação. Não porque minhas ideias tenham subitamente se modificado quando voltei ao Brasil. E não porque “ortodoxos” e “heterodoxos” convivam em paz e harmonia fora do Brasil, ou algo assim.
O significado do rótulo “ortodoxo” no meio acadêmico brasileiro (que acaba, por vezes, transbordando para a discussão dos jornais) é muito diferente do que pensa o não-economista. Vou explicar.
Assim como atacantes no futebol vivem de marcar gols, pesquisadores vivem de publicar seus trabalhos em periódicos. Contudo, o número de gols não é a única coisa que importa. Por exemplo, ser artilheiro da terceira divisão do campeonato paulista é muito diferente de ser artilheiro da Champions League européia. Anderson Cavalo deve ser um excelente jogador, mas indiscutivelmente, Lionel Messi é melhor.
Da mesma maneira, o número de artigos que um pesquisador publica é um indicador muito imperfeito de sua contribuição. Há periódicos que têm grande impacto sobre a profissão e outros que são muito pouco lidos. É muito difícil publicar nos periódicos de maior impacto.
Para avaliar a produção de um pesquisador e, portanto, de um departamento de economia, é preciso classificar os periódicos. Como fazer isso? Há maneiras objetivas, baseadas em medidas de impacto como o número de citações. Muitos artigos são escritos a esse respeito, propondo maneiras de classificar os periódicos.
Contudo, a classificação que avalia a produção das universidades brasileiras (a da CAPES) é feita de maneira mais subjetiva. Basicamente, um grupo de acadêmicos das diversas universidades se reúne para brigar produzir uma classificação. Na analogia, é como se os técnicos de futebol conversassem para decidir quais são os principais campeonatos do mundo.
Como essa classificação difere das que saem por critérios mais objetivos? Na classificação da CAPES para economia, os periódicos de nível mais alto (A1) estão na tabela abaixo.
As siglas abreviam os nomes dos periódicos, mas isso não é importante. Os números ao lado de cada periódico indicam sua classificação de acordo com um critério objetivo bastante empregado, baseado em impacto e citações (na classificação da CAPES, esses periódicos são todos “A1”, equivalentes).
Veja que a tabela da CAPES casa bem com a tabela internacional até um ponto. Só no final há uma discrepância. Por quê?
Os periódicos com números azuis são “ortodoxos”. Os periódicos com números pretos são os “heterodoxos”. De acordo com o critério objetivo, eles são classificados nas posições #149, #230, #254 e #293. Eles estão nesta lista por serem heterodoxos. Essa é, de fato, a justificativa.
Sem a separação entre “heterodoxos” e “ortodoxos”, essa lista seria muito diferente. A avaliação da produção internacional de alguns economistas e departamentos de economia mudaria radicalmente. Assim, essa distinção é muito importante na academia brasileira.
Os periódicos que não estão nessa lista mas que são bem classificados de acordo com o critério objetivo (os 50 ou 100 primeiros) também são ortodoxos.
Até onde eu sei, todo mundo em Yale e na LSE é ortodoxo. Assim como em quase qualquer lugar que você vai pensar (Harvard, Chicago, MIT, …). Sei que há heterodoxos em Cambridge, na Inglaterra, mas apresentei seminários lá duas vezes, e não me lembro de ter encontrado alguém que se definia como heterodoxo. Creio que são muito poucos os heterodoxos que estão no departamento de economia (acho que há muitos no departamento de Land Economics).
Thomas Piketty é 100% ortodoxo. Ele já publicou artigos nos 5 periódicos no topo da classificação objetiva e nunca publicou em nenhum desses periódicos heterodoxos. Da mesma maneira, Paul Krugman é 100% ortodoxo, Nouriel Roubini é 100% ortodoxo, Joseph Stiglitz é 100% ortodoxo. Não sei se eles sabem que esses periódicos heterodoxos existem.
Em suma, “ortodoxo” em economia não significa muito em termos de opiniões sobre políticas públicas. Um acadêmico considerado “ortodoxo” no Brasil é aquele que está tentando interagir com a grande maioria da comunidade acadêmica internacional. Os heterodoxos, por seu lado, estão tentando construir um outro caminho, que conversa pouco com a grande maioria da comunidade acadêmica internacional.
Alguns equívocos comuns:
– O JPKE (#254) é o Journal of Post Keynesian Economics. Muitos heterodoxos se definem como “pós-keynesianos”. Isso significa que os “ortodoxos” são anti-keynesianos? Não, de forma alguma! Parte fundamental do pensamento keynesiano é que os preços e salários demoram a se ajustar. A implicação chave do meu artigo mais bem publicado é que o ajuste de preços é de fato mais lento do que os dados parecem indicar.
– Os ortodoxos se baseiam em receitas/formulações antigas? Não, de forma alguma! Os heterodoxos “pós-keynesianos” seguem Keynes, um economista brilhante que morreu em 1946. Eu tenho artigos com conclusões “keynesianas”, outros com conclusões completamente contrárias e, estranhamente, é isso que faz de mim um “ortodoxo”: eu não sou “keynesiano”, nem “austríaco”, nem nada disso. E eu acho ótimo que a grande maioria da profissão seja assim.
– Por fim, os economistas que estão publicando nos periódicos heterodoxos têm todo o meu respeito: eles estão produzindo, publicando artigos, ao contrário de uma grande parte das pessoas pagas como professores pesquisadores (com o dinheiro dos seus impostos) que não produzem e não publicam há décadas.
Até agora, falei sobre “ortodoxos” no meio acadêmico. No debate sobre políticas públicas, “ortodoxia” equivale a defender juros altos e ajuste fiscal. Eu acredito que a grande maioria dos economistas que publicam nos principais periódicos do mundo (os “ortodoxos”) defenderia um ajuste fiscal para o Brasil no momento atual, se parassem para estudar o assunto (muitos não devem ter opinião formada a respeito). Mas em outros casos, há muita discordância.
Além disso, essa distinção acaba por passar a ideia que economia se resume às políticas monetária e fiscal. Economia é muito, mas muito mais que isso, mas esse assunto vai ficar para outros posts.
Referências:
– O ranking objetivo eu tirei do artigo de Pierre-Philippe Combes e Laurent Linnemer, “Inferring Missing Citations: A Quantitative Multi-Criteria Ranking of all Journals in Economics”, de 2010. Outros rankings baseados em critérios objetivos vão levar a resultados bastante parecidos.
– Eu usei a avaliação da CAPES de 2012, que foi usada para avaliar a produção dos pesquisadores no triênio 2010-2012. Até onde eu sei, a que será usada para a avaliação neste triênio (ou quadriênio) não foi divulgada.
– O meu artigo com conclusão “keynesiana” mencionado no post é “Sales and Monetary Policy”, coautorado com Kevin Sheedy e publicado no American Economic Review (AER) em 2011.
– Eu publiquei há poucos anos um artigo acadêmico sobre a avaliação da Capes: link para o artigo.
Detalhes:
– Há certo consenso na profissão sobre a relativa importância dos periódicos. Por exemplo, em qualquer universidade pelo mundo dentre as que se ouve falar, todos sabem quais são os cinco periódicos de mais prestígio na área de economia (os “top 5”). Para se tornar professor titular nos melhores departamentos de economia do mundo, a meta é publicar artigos em periódicos “top 5” (entre 2 e 5 artigos, eu diria, dependendo da universidade e de quanto impacto o artigo acaba tendo). Os 5 primeiros da tabela de acordo com a classificação objetiva são, de fato, esses “top 5”, a classificação bate com o consenso da profissão.